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Em comunhão com a natureza. Veja a entrevista com a chef Tati Lund

A chef apostou na culinária vegana muito antes de ela virar tendência e, em grande estilo, os 10 anos de seu restaurante

O .ORG é um restaurante filosófico. Servimos ali muito mais do que um prato de comida, mas um estilo de vida! É como uma escola.” É assim que a chef Tati Lund define sua casa e seu estilo. Muito antes dessa onda mais vegana que atinge a sociedade, a chef já surfava nela, tendo sido uma das pioneiras em fazer uma culinária cheia de sabor, sem o uso de produtos de origem animal. “Transformamos o prato em um novo modelo de educação, aquele que honra a natureza e valoriza a colaboração. Ensinamos na prática como é possível alimentar-se pensando na sociedade e no planeta de um jeito muito gostoso”, define Tati. “Quando preparo uma refeição, observo o todo, honro a terra e valorizo a biodiversidade. Meu propósito é criar consciência, inspirar a transformação e conectar as pessoas com a natureza por meio de um bom prato de comida.”

Sua casa e seu trabalho estão completando dez anos, uma trajetória bonita e que agrega muito valor. Muito mais que dividir, ela sabe que todos podem conviver harmonicamente à mesa, celebrando e se respeitando. Ela conversou com Ricardo Castilho, diretor editorial de Prazeres da Mesa e, de quebra, ainda ensinou receitas.

Receita de Levinho – Foto: Tomás Rangel | Divulgação
Prazeres da Mesa – Em dez anos, quais as principais mudanças que notou entre os consumidores?

Tati Lund – Acredito que o consumidor ampliou sua consciência e começou a buscar uma gastronomia mais saudável, sustentável e ética. Hoje, temos muito mais acesso à informação e cresce o número de pessoas que aderem a uma alimentação com base em plantas.

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Muita gente critica os termos feijoada vegana ou hambúrguer vegano. As pessoas defendem que o nome deveria ser outro. Acha isso relevante?

Comida conta história, é afeto e memórias. Praticamente, todos os momentos da vida são celebrados em volta da mesa. Por isso, essa nem deveria ser uma discussão; nem consigo entender quem faça esse questionamento. Como eu poderia chamar o bobó, ou a moqueca ou feijoada que faço? A base é exatamente a mesma, a técnica é a mesma, a memória é a mesma. Apenas pelo fato de não ter nada de origem animal, o prato deveria ter outro nome? As referências mentais de um cozinheiro vegano são as mesmas de um cozinheiro tradicional, apenas com outro olhar para a vida e a biodiversidade.

Uma atitude simples como a de diminuir o consumo de carne já seria suficiente para observar um impacto positivo, reduzindo a emissão de gases de efeito estufa, freando o desmatamento e economizando água. Não vejo como esse fato poderia ser ainda motivo de polêmica nos tempos em que vivemos, com a informação em nossas mãos.

Penso que deveríamos estar preocupados com o que tem por trás do nosso prato e não com uma simples nomenclatura afetiva cultural.

Chef Tati Lund – Foto: Tomás Rangel | Divulgação
Além de natural, você é sustentável. Explique as ações que envolvem o seu dia a dia no restaurante.

Tudo começa no cuidado com o solo e na escolha dos alimentos. Todos os ingredientes são orgânicos, frescos, locais e sazonais. Conheço os agricultores pessoalmente e falamos diariamente para delimitar a demanda de ambas as partes e, claro, saber a oferta da natureza. Assim, temos um menu dinâmico que muda todos os dias. Outro ponto importante: fazemos a reciclagem e a compostagem de todos os resíduos, o que significa que o .ORG não gera lixo. Os recicláveis, como papel, papelão, alumínio e vidro, seguem para a cooperativa de reciclagem parceira, gerando renda para os catadores. Com a compostagem, transformamos os restos de comida em terra fértil para plantar em nossos jardins. Mas o principal é que somos atentos ao lixo que produzimos, buscando sempre a redução de resíduos para o planeta. Usamos basicamente alimentos que vêm da terra e poucos produtos vêm embalados. Tanto que, hoje, nossa coleta só ocorre de 15 em 15 dias, o que é bem impressionante para um restaurante. Fora isso, utilizamos apenas embalagens ecológicas ou retornáveis no delivery e no take away. Precisamos de uma transição urgente para uma agricultura justa, saudável e sustentável de verdade.  Que valorize a terra, regenere o solo, promova qualidade de vida para o agricultor, fortaleça a economia local e traga saúde na composição do prato. É nosso papel, como consumidora e mais ainda como cozinheira, mudar esse cenário. Aqui, desejamos ser exemplo de restaurante sustentável no Brasil. Queremos mostrar que é possível investir em um novo modelo de negócio, que não vise apenas ao lucro e, assim, inspirar mais empresas e pessoas a se envolverem nesse movimento.

Neste último ano, você sentiu mais mudanças positivas, ou negativas? O que chamou mais atenção?

Percebo que durante a pandemia muitas pessoas, com essa pausa necessária, tiveram mais tempo para refletir em suas escolhas e também puderam observar a urgência da mudança em nosso caminho. A sociedade atual vive um problema crônico de dissociação: a floresta está separada da vida urbana, os seres humanos não compreendem o conceito de biodiversidade, os alimentos estão distantes da consciência de suas origens e a saúde dos seres está desconectada da saúde do meio ambiente. Agora, mais do que nunca, está bem nítido como nossas escolhas humanas afetam o planeta. E, mais impressionante ainda, a forma como o caos se espalha. Fico realmente preocupada com as mudanças climáticas e como ainda não damos a atenção necessária ao fenômeno. Por isso, falo muito como nós, indivíduos, podemos transformar nossas atitudes sem esperar ou cobrar a mudança de governos ou empresas, que, obviamente, têm um papel fundamental. Mas tudo começa no individual. Muitas vezes, transferimos a responsabilidade para os outros sem nem mesmo olhar para os nossos próprios hábitos em casa, no trabalho e na comunidade. Eu acredito na mudança, em uma convivência mais sustentável com ecossistemas resilientes e funcionais, preservando a vida, regenerando as florestas e promovendo a mitigação das mudanças climáticas.

Os carnívoros consideram os veganos mais radicais? É verdade ou conseguiremos todos viver em paz?

Na maior parte, a escolha por uma filosofia vegana é por um bem maior coletivo e para beneficiar todos os seres do planeta. Não existirá futuro, se continuarmos comendo carne da maneira que a comemos atualmente. No Brasil, existe mais gado do que seres humanos, e para cada animal é necessário 1 hectare de terra. É fato que não podemos mais avançar com a degradação da terra… A pecuária e a monocultura de soja para alimentar o gado são um dos principais fatores para promover o desmatamento.

Por isso, é fundamental ter escolhas mais conscientes e reduzir a carne no prato. Acredito que só existe esse caminho para vivermos em paz, enquanto humanidade. Vai muito além de opiniões, é fato científico!

Você nunca tem vontade de comer carne? Quando isso começou?

Não, mesmo. Às vezes até tento experimentar para conhecer alguma dessas fake meats que estão em alta no momento, mas realmente não consigo mais gostar nem da textura nem do sabor. Eu me tornei vegetariana quando assisti ao filme A Carne É Fraca, há 16 anos, na faculdade de nutrição. Nesse mesmo dia, cheguei em casa e falei: “Mãe, eu nunca mais vou comer carne”. Foi uma decisão natural para mim. Uma escolha teoricamente mais difícil, mas que abriu todas as portas da minha vida e me fez ser quem sou! A partir daí, optei por ter um olhar mais atento para tudo e assumir uma postura de cuidado e responsabilidade com a vida.

Para quem quer entrar nesse mundo, qual você acredita ser o principal obstáculo?

Não vejo nada como obstáculo, de verdade. Acredito que é uma oportunidade imensa que está à nossa frente para construir algo novo. Basta ter coragem e criatividade. Quando abri o restaurante, aos 23 anos, há dez anos, não tinha conhecimento de absolutamente nada: cozinha, administração, finanças ou liderança. Apenas acreditava muito no que queria, tinha força de trabalho para fazer acontecer e muita humildade para aprender aos poucos, dando um passo pequeno de cada vez.

Arroz do Norte com feijão Santarém – Foto: Tomás Rangel | Divulgação
Berinjela defumada – Foto: Tomás Rangel | Divulgação

     

    Sua família inteira é vegetariana? Como resolvem datas festivas etc.? Ficam de boa?

    Súper de boa! Eles não são vegetarianos, apenas minha mãe e meu noivo. Ontem mesmo fiz um churrasco vegano criativo, que foi sucesso absoluto e todos ficaram muito satisfeitos. A ponto de desistirem em colocar a picanha na brasa. No Natal, por exemplo, convivemos com todos os pratos na mesma mesa harmonicamente… Sempre tem a receita tradicional da minha avó: bacalhau. E o meu “jacalhau”, mas adivinha qual acaba primeiro?! (risos)

    Você é convidada para churrascos de amigos? Vai de boa?

    Na verdade, sou convidada para fazer os churrascos dos amigos e da família. Brincadeira! Mas é claro que vou. Nunca vou deixar de conviver com as pessoas que amo, pelo contrário, prefiro até estar no meio de pessoas que não pensam como eu, ou que talvez apenas não tenham parado para refletir. Assim, quem sabe, não consigo plantar uma semente?

    Na gastronomia, digamos “tradicional”, muitos profissionais pensam em combinações e em cartas de vinho. Você se preocupa com isso? Se sim, apenas com vinhos orgânicos?

    Sim, por aqui só temos rótulos orgânicos de vinhos, cachaça, vodca e gim.

     

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    Receita de Levinho Berinjela defumada Arroz do norte

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    Ricardo Castilho

    Ricardo Castilho é diretor editorial de Prazeres da Mesa

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