Em entrevista, Thiago Castanho fala sobre o fim do famoso Remanso do Bosque
O chef paraense ainda faz previsões para seu novo restaurante e para seu programa de TV, Sabores da Floresta
Em abril de 2020, Thiago Castanho anunciou o fim do Remanso do Bosque, um dos restaurantes mais famosos do Norte do Brasil. Mas, diferentemente dos muitos espaços gastronômicos que fecharam as portas por causa da pandemia do novo coronavírus, esse encerramento vinha sendo planejado desde 2019.
Por Christiany Yamada
Era intenção dar lugar ao BaYuca, novo empreendimento da família Castanho, também em Belém. O nome do restaurante brinca com dois aspectos que farão parte da identidade do lugar: a estrutura pequena e intimista de uma baiuca (uma espécie de barzinho) e a inspiração amazônica, que vem de yuca, palavra espanhola para mandioca.
Por causa da pandemia, a previsão de inauguração mudou para 2021. Enquanto isso, Castanho se prepara para a reabertura do Remanso do Peixe, o primeiro restaurante da família, no qual o chef teve suas primeiras experiências com cozinha, quando ainda criança, pois ajudava os pais.
Além disso, ele começa a traçar a segunda temporada do programa Sabores da Floresta, exibido no canal Futura, no qual são explorados ingredientes regionais das comunidades mais tradicionais da Amazônia.

Mesmo sendo autoridade na gastronomia local, Castanho parece ter herdado a humildade dos pais, seu Chico e dona Carmen, que começaram com um delivery de pizza. Durante a maior parte da entrevista, ele responde como “nós”, referindo-se à família. “Não tem uma coisa que seja minha e uma coisa que seja do meu pai. Sempre foi tudo nosso.”
Em uma tarde tipicamente quente e úmida de Belém, quando o número de contágios seguia em queda e o comércio já reabria sem restrição de horário, encontro Thiago em um café. Ele foge do estereótipo de chef, é inegavelmente paraense e tem a paixão pela Amazônia em tudo o que faz.
O que o levou a fechar o Remanso do Bosque, que era um dos restaurantes mais conceituados da Região Norte?
Apesar de ter lucro, era um restaurante muito grande – sempre achamos isso –, mas quando alugamos aquele ponto não tínhamos noção, experiência. Víamos o Remanso do Peixe com uma fila de espera gigante nos fins de semana e aí achávamos que tinha de haver uma condição melhor para os clientes, sem fila – olhávamos a fila como algo ruim. Foi daí que alugamos aquele ponto e construímos o Remanso do Bosque.
Hoje, vemos que o melhor é ter fila, ser menor. Por causa da estrutura, da equipe, da energia, esse tipo de coisa. Até alugamos um ponto aqui nesta rua (Bráz de Aguiar, em Belém), onde iria ser a BaYuca. Acabou que não vamos mais fazer também.
Não vai mais fazer a BaYuca? O que vem agora, então?
Vamos esperar o Remanso do Peixe abrir. Achamos que seria o momento de abrir coisas que já são para uma fase pós-pandemia, como a estratégia de delivery para o Remanso do Peixe. Mas nem isso abriríamos agora. O projeto da BaYuca não foi escrito para esse cenário. Então, não tem por que desgastá-lo agora.
E para o pós-pandemia?
Sim, em 2021, sem dúvida. Ele está pronto, com marca, prato, estratégia. Só falta agora o novo ponto. Teremos outra oportunidade, com certeza. Depois de uma crise sempre aparecem coisas até melhores do que o que estávamos olhando. Só precisamos esperar o momento certo. Porque é uma ideia muito legal e até por isso é que não queremos abrir agora.
Além da estrutura, qual será a diferença da BaYuca para o Remanso do Bosque?
Bastante coisa. Não iria ter tanto prato de lá do Remanso. Talvez os pratos na brasa fossem entrar. Mas, agora… podem surgir outras coisas. Não tem como saber neste momento. O que a pandemia veio nos ensinar é que não temos o controle de nada.
Como começou a ideia para o programa Sabores da Floresta?
O Sabores foi desde quando via programas de televisão, como o do Anthony Bourdain. Sempre pensava: “um dia vou fazer um programa aqui na Amazônia desse jeito, dessa mesma forma”. E, para isso, tive de traçar estratégias. Inclusive, o próprio Cozinheiros em Ação (GNT), para o qual fui convidado, não era o estilo de programa que eu queria. Mas eu quis fazer para ser conhecido, para poder ter o meu programa. Foi assim que conseguimos.
Agora, estamos com a segunda temporada aprovada pela Lei Semear (lei de incentivo, estadual) e conversando com alguns patrocinadores. Por enquanto não dá para gravar, por causa da pandemia. Viajamos para interiores e lugares que não têm estrutura e, caso alguém estivesse contaminado, seria ruim. O lançamento deve ser só no segundo semestre de 2021.

Como a segunda temporada deve se diferenciar da primeira?
Tentaremos mostrar as frutas de inverno. Na primeira temporada, pegamos as frutas e peixes de verão, só que a maior parte das frutas é de inverno, como bacuri, pupunha. Tem muito produto que falta, isso é que é o melhor. Ainda não gravamos com o filhote (o peixe).
Aqui não se vê inverno nem verão, né? Eu não saberia diferenciar.
É só o dia que chove, e o dia que chove demais. (ri)
Como é que vocês veem a exportação desses ingredientes amazônicos para o Sul do Brasil e também para fora? É possível o país comer o mesmo que o paraense?
Acho que não dá para todos os pratos da Amazônia ficarem famosos. É igual à Bahia. Vai-se para o Sudeste e se encontram alguns pratos baianos. Mas o que o pessoal conhece que seja baiano? Moqueca e acarajé. São dois pratos que são os mais difundidos. Na Bahia, tem muito mais. Mesma coisa o Pará. O que ficou famoso fora do estado? O açaí. Só que da forma que não o comemos.
Outro potencial de ficar famoso é o tucupi. Com chefs usando em outras preparações, além do tacacá. Vejo que é muito difícil o produto ser levado da forma como o consumimos culturalmente, vai acabar adaptado. Ou vai virar uma “superfruit”, como o açaí e a castanha-do-pará, ou terá uma reinterpretação de chef.
Em um dos episódios do Sabores da Floresta, você falou sobre o açaí, que mudou de opinião em relação à transformação por que o produto passou no Sudeste. O que acha disso?
Antes, como todo paraense, não gostava quando colocavam granola no açaí. Só que hoje, acho normal. Imagino que a massa na Itália seja bem diferente do que a que consumimos aqui. O sushi – a cada temaki em que colocam cream cheese, um japonês morre (ri). Mas foi por causa dessas adaptações que muitas dessas culturas ficaram famosas. Acaba que o paraense vai sendo reconhecido pelo açaí e muita gente fala “quero conhecer a Amazônia, a terra do açaí”, e quando vê, o açaí não é a mesma coisa que ele consumiu lá. Mas tudo começa com essa instigação.
Então, você acha que é uma coisa positiva?
Não sei se é uma coisa positiva ou negativa. Hoje, pelo menos, não tenho críticas. Vejo que é uma forma de exportar o produto e gerar negócio. Porque a forma como o consumimos, o açaí puro, com peixe – até com açúcar, é estranha para quem vem de fora –, não seria rentável. O açaí hoje é um dos grandes geradores de renda para o estado, para a Amazônia em geral. E se não tivesse essa forma como foi divulgado, como as pessoas consomem lá fora, não teria esse mercado.
Você percorre comunidades mais afastadas para descobrir os ingredientes dos restaurantes, então transforma em pratos de alta gastronomia e alimenta, muitas vezes, os próprios paraenses com esses produtos. Como é para você, colher do ‘caboclo’ para alimentar a elite com a comida da própria região?
Acho que atendemos dois públicos: do Remanso do Peixe e do Remanso do Bosque. O do Bosque era mais elite, sim, mas foi um trabalho de longo prazo. Desde o início trabalhávamos com algo muito tradicional, mas começamos a fazer pratos diferentes com ingredientes paraenses e muita gente tinha certo receio. Daí, tivemos de fazer uma conquista primeiro com o pessoal de São Paulo – querendo ou não, foi esse o trabalho. O comensal teve de ver que temos reconhecimento de outro estado para o próprio paraense pensar: “Opa! Vou provar esse prato de uma forma diferente”.
Depois, quando vimos, no Remanso do Bosque, grande parte do cardápio era tradicional, era peixe assado. O prato mais famoso era o filhote assado na brasa. Mas também tinha o sanduíche feito com pão de açaí no vapor e peixe frito dentro, uma releitura do peixe frito com açaí. Gostávamos de brincar. Uma gyoza de jambu com tucupi, que era a mistura do Japão com o Pará, mas também tinha o arroz de pato com tucupi e jambu. Era sempre essa brincadeira, tentando trazer ingrediente paraense de uma forma tradicional para quem é tradicional e de uma forma reinventada para quem quer experimentar ou quem gosta de viajar nos ingredientes. Essa é que é a nossa fórmula.
Você tem feito o nerd day em seu Instagram com indicações de livros que falam sobre Slow Food e comida de verdade em geral. Ao mesmo tempo que isso vem voltando, tem um crescimento bem grande da comodidade dos alimentos fáceis e ultraprocessados que estão chegando aos locais mais afastados. Como alguém que conhece bem esses lugares, qual a sua percepção?
Acho que o pessoal de restaurante tem a responsabilidade de brigar midiaticamente com a indústria, que paga muito alto para botar ali na vitrine, na televisão, seus produtos que fazem mal, que são ultraprocessados. Com essa certa influência na gastronomia, conseguimos também mostrar os produtos artesanais e as pessoas que estão por trás deles.
O chocolate do Combu (produzido na Ilha do Combu, em Belém), por exemplo, ficou famoso, e as pessoas estão indo para lá. Abriram uma porção de restaurantes na ilha por causa disso. O comensal também vê que dá para usar aquele chocolate em uma receita em casa. E ele não está acessível no supermercado.
E dentro dessas comunidades existe uma resistência forte da produção desses ingredientes locais que não são tão famosos quanto o chocolate do Combu?
Acho que isso é tradição. O cara do campo só vai manter a tradição se tiver mercado. Ele tem o maior prazer em fazer aquilo, porque já sabe fazer, mas é preciso ter mercado. Se não, ele vai largar e vender coisas na feira. Ou vai ser enfermeiro e largar aquilo, como um sonho nunca realizado. Essa é, inclusive, a parte do meu trabalho de que mais gosto, que é encontrar pessoas no meio do “nada” e inseri-las no contexto gastronômico-turístico de fornecimento.
Você acha que esses ingredientes de origem tendem a virar uma iguaria gourmet?
Para as pessoas de fora, tem esse potencial. Para os locais, (a tendência) vai ser reconhecer mais. Quem é da região, dará mais valor àquilo, verá que vai sustentar a família. Um exemplo é o da ostra de São Caetano (de Odivelas, cidade no interior do Pará). Começaram a produzir ostra, mas não tinha tanto mercado. Quando cresceu, aumentou a produção lá, mais pessoas se associaram à cooperativa. Com isso, deixaram de capturar tanto caranguejo. Na época de defeso, por exemplo, nem se captura mais. Ou seja, com a produção de ostra, mantém-se a de caranguejo, que tinha como grande problema a sobrepesca.
Como é para você apresentar para o Brasil um Pará que muitas vezes não é conhecido nem pelos próprios paraenses?
É esse o propósito. Sempre foi isso. Havia muitas pessoas que nem tinham ido ao Combu. E vamos falando de Combu, mostrando, e perguntam: “Onde é isso?”. Pô, tá no teu quintal. Temos essa visão do turismo também, sabe? Sabemos o quanto isso pode mudar uma região, negativa ou positivamente. Vai depender do grupo que está ali no meio. Mas vemos um impacto muito mais positivo. Nossa região tem um potencial incrível e precisamos ir a outros lugares. Não ficar só em Belém ou em Alter (do Chão, distrito em Santarém, no oeste do Pará). Tem a costa do Pará, o Marajó, que está esquecido. Há muitos anos, foram feitos grandes investimentos no setor hoteleiro lá, e está esquecido.
E você acha que estamos em um caminho positivo para esse tipo de turismo?
Depende de nós. Belém já virou uma cidade gastronômica, as pessoas vêm para comer. Está sendo conhecida por isso. Em relação a Manaus, Belém é a cidade gastronômica. E Tapajós é o “Caribe brasileiro”, de rio. Falta essa parte da Amazônia atlântica ser conhecida. Fortalezinha, Algodoal. Querendo ou não, o turismo ajuda nos produtos e nos produtores, que ficam conhecidos. E isso ajuda o ciclo a fechar.
* Entrevista publicada na edição 204 de Prazeres da Mesa, em agosto de 2020