Fundos: mais sabor e aroma
Tão importantes quanto a fundação de um projeto arquitetônico, os fundos prometem fazer a diferença no resultado de diversas receitas, deixando-as mais estruturadas e harmoniosas
Caro leitor, se você chegou até aqui provavelmente significa que deseja aprimorar seus dotes culinários ou ainda iniciar a carreira entre as panelas. Porém, antes de qualquer coisa, é primordial que entenda a importância de dominar as bases. Por isso, nesta segunda edição do especial “Bê-á-bá da cozinha”, apresentamos os fundos, responsáveis por agregar às receitas ainda mais sabor e aroma.
Fundo versus caldo
Para que não haja confusão, embora parecidos, fundo e caldo são receitas com características um pouco diferentes. Dessa maneira, entende-se como fundo as preparações líquidas, sem qualquer tipo de liga, feitas a partir do cozimento em água de ossos, carcaças, aparas de carnes e legumes, que emprestam os sabores de maneira suave. Já os caldos têm a mesma composição, porém estão prontos para o consumo e recebem o acréscimo de pedaços de carne, a fim de lhes apurar o sabor.

Classificação
Os fundos podem ser de carne, ave, legumes e peixe (este chamado fumet) e são divididos pela cor. “Os fundos claros são aqueles feitos a partir de ingredientes crus, colocados diretamente na água e que não passaram por nenhum tipo de refoga”, diz Mariana Pelozio, chef à frente do restaurante Duas Terezas. Os escuros, por sua vez, são normalmente os de carne vermelha, elaborados com ossos e legumes dourados em forno ou na própria panela em que foi feita a receita.
Guarnições aromáticas
Além do sabor obtido dos elementos-base de cada fundo, é interessante agregar também o aroma. Para isso, alguns legumes, ervas e especiarias cumprem bem o papel.
Mirepoix
O mirepoix é uma das guarnições mais utilizadas na cozinha; consiste em uma mistura de legumes, normalmente cebola (50%), cenoura (25%) e salsão (25%) – em uma proporção que pode ser de 100 gramas para um 1 litro de água. Dependendo do que se pretende obter, a cenoura ainda pode ser substituída pela parte branca do alho-poró. É possível cortar os ingredientes em cubinhos ou ainda deixá-los inteiros. Mas é importante ressaltar que quanto menor o corte, maior a superfície de contato do insumo com a água, liberando ainda mais sabor e aroma.
Bouquet garni
Como o próprio nome sugere, o bouquet garni é como um buquê de ervas. Comumente utilizada para preparos de carnes, tal mistura aromática pode levar um arranjo de alecrim, tomilho, salsinha, louro, talos de salsão e alho-poró. Os elementos devem ser amarrados com barbante, para facilitar retirá-los ao final do cozimento.
Sachet d’épices
O sachet d’épices cumpre o mesmo papel que o bouquet garni, porém são adicionadas algumas especiarias, como cravo, pimenta em grãos e até mesmo alho. Como são menores e podem se perder em meio à água, colocam-se esses ingredientes em uma trouxinha de gaze ou infusor de chá, também amarrados com barbante.
Cebola piqué
Essa guarnição leva o nome “piqué”, pois são espetados na cebola alguns cravos-da-índia. Na metade da cebola, ainda é comum fazer um corte superficial para acomodar uma folha de louro. É bastante utilizada para aromatizar molho bechamel e sopas.
Passo a passo dos fundos
“Embora seja algo muito simples, o preparo dos fundos requer paciência e cuidado”, afirma Mariana. “Temos de lembrar que eles são a base de uma construção culinária.” Por isso, reserve algumas horas para colocar a receita em prática e prepare-a com antecedência.
Legumes
Faça um mise en place com o mirepoix, o bouquet garni e o sachet d’épices. Em uma panela, cubra com água todos os ingredientes e cozinhe ao fogo brando por aproximadamente 50 minutos. Coe, espere esfriar e utilize como preferir. “Na receita clássica, usamos cebola, cenoura e salsão. Mas nada nos impede de fazer um fundo com outros ingredientes, como cascas e talos de verduras”, diz a chef.
Carne
No fundo escuro de carne, separe ossos de boi ou de vitela (bem lavados), prepare o mirepoix e outras guarnições aromáticas de sua preferência. Aparas de carne também são muito bem-vindas. “Coloco todos esses ingredientes para tostar ao forno, tomando cuidado para que não queimem.”
Na sequência, Mariana costuma adicionar os insumos dourados em uma panela e, do tostadinho que sobrou na forma, deglaceia com água ou cachaça. Ossos, aparas, guarnições e o líquido deglaceado são cobertos por água, deixando a mistura cozinhar por no mínimo 1 hora, para caldos de cerca de 1 litro.
Enquanto cozinha, sempre ao fogo baixo, é importante retirar, com o auxílio de uma escumadeira, a espuma que se forma na superfície. “Invariavelmente, em tudo o que tenha gordura vai subir espuma. Isso é algo que não queremos em nosso fundo.”
Com todo o sabor dos ingredientes extraído, é preciso coar. “Depois, gosto de colocar o líquido em sacos plásticos próprios para alimentos e deixá-los em geladeira para decantar”, diz a chef. “Isso faz com que a gordura suba e o fundo fique límpido. Daí, só faço um pequeno furinho na base do saco para separar o líquido da gordura.”
Dica: se quiser uma cor ainda mais acentuada, é possível acrescentar extrato de tomate ao cozimento do mirepoix, em um processo chamado pinçage.
Frango
Como no fundo de carne, também são utilizadas as carcaças do animal, porém não precisam ir ao forno. Para o preparo de um fundo claro de frango, lembre-se de não refogar o mirepoix, bastando colocar todos os ingredientes juntos na panela. Ao final do cozimento, coe o líquido.
“Para esse fundo, não gosto de utilizar a pele do frango, já que o deixaria muito gorduroso e até rançoso. No entanto, pescoço e pé adicionam um gosto maravilhoso e são supernutritivos.”
Peixe e frutos do mar (fumet)
Os peixes mais recomendados para o fumet são os brancos e pouco gordurosos. “Cabeça, rabo e espinha são ótimos, mas evite as entranhas dos pescados, pois têm a possibilidade de amargar”, afirma Mariana. Carcaças de crustáceos, como o camarão, também podem entrar na receita. “É possível não tostar os ingredientes, colocando-os diretamente na panela.”
Cuidados indispensáveis
A fim de que seus fundos fiquem à prova de erros, alguns cuidados são essenciais. A começar pela água, que deve entrar fria na panela. “Quando vamos cozinhar batata, por exemplo, já começamos com água quente. Isso é feito para acelerar o processo, pois quanto mais tempo o legume ficar na água que será descartada, mais perderá sabor e nutrientes. Mas no fundo é o contrário: queremos que os ingredientes passem todas as suas características ao líquido.” Esse fato vale, inclusive, para a fervura. A ideia é que o fundo cozinhe lentamente e ao fogo baixo (processo intitulado “simmer”). Além disso, não é interessante que o líquido evapore.
Outra dica indispensável é não temperar com sal, já que o fundo é base para outras receitas e serve também para corrigir eventuais problemas. “Em um molho de tomate, se errei a mão no sal ou se precisar que fique mais líquido, posso consertá-lo (ou ‘alongá-lo’) com um pouco de fundo. Se ele estiver salgado, isso não será possível. Fora que, quando o líquido é reduzido, o sal fica muito concentrado”, diz.
Ademais, não mexer o líquido enquanto cozinha, coar assim que ficar pronto e resfriar antes de usá-lo são mais alguns detalhes importantes para se ter em mente.
Coar e armazenar
O coador mais indicado para os fundos é o chinois, uma espécie de peneira em formato de cone, feita de metal. Mas não há problema nenhum em usar coadores normais. Só fique atento para que nenhum osso ou espinha passe despercebido.
Quanto ao armazenamento, a melhor forma é guardar o líquido em porções. Para isso, as forminhas de gelo podem ser boas opções. “Nesse caso, acho até legal reduzir um pouco o fundo para que os sabores fiquem mais concentrados”, afirma Mariana.
“No restaurante, é impossível congelarmos os fundos, por isso acabamos cozinhando-os todos os dias. O que fazemos, no entanto, é congelar as sobras de legumes conforme vamos preparando as receitas.” Congelados, os fundos têm validade de aproximadamente um mês.
Sem desperdício

Mariana Pelozio, do Duas Terezas, restaurante que mescla as gastronomias italiana, nordestina e caipira, diz que os fundos são indispensáveis. Risotos, molhos, caldos, sopas e até um delicioso picadinho são engrandecidos com os fundos, deixando-os com sabor mais estruturado e harmonioso. “Porém, não tenho como ‘jogar na fogueira’ uma pessoa que escolhe usar o fundo industrializado”, diz a chef. “Além de ser uma economia de tempo, as receitas de nossas avós eram assim. O que eu sugiro é optar por marcas que se preocupam em reduzir o sódio. Hoje no mercado já temos boas opções.”
Mas, além de dar um toque caseiro às preparações, ela diz que a vantagem de preparar os fundos em casa é aproveitar ingredientes por inteiro. “A redução de lixo é muito importante. Na cozinha brasileira, não usamos as sobras”, afirma. “Aqui no restaurante, começamos o dia já colocando água na panela e, conforme vamos fazendo nosso mise en place, acrescentamos tudo o que seria descartado (cascas de cebola, cenoura, talos, ramos e aparas de carnes). É uma questão de economia, claro, mas também de respeito por toda a cadeia de produção.”