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Neorruralismo orgânico

Movidos pelas questões ambientais, pequenos produtores de Teresópolis, região serrana do Rio de Janeiro, saíram da cidade a fim de cultivar apenas insumos orgânicos em meio a um dos maiores cinturões verdes do Brasil

Basta caminhar poucos quilômetros pela zona rural de Teresópolis, na serra fluminense, para perceber que ali se encontra um dos principais cinturões verdes do país. Apesar de a maioria esmagadora da produção ser da agricultura convencional, há um pequeno, porém grandioso, movimento de neorruralismo no qual produtores decidiram apostar no cultivo orgânico.

A iniciativa começou a ganhar força na região ainda na década de 1980, quando biólogos, agrônomos e outros estudiosos do centro urbano partiram para o município a fim de viver em contato com a natureza. “Era a época do pós-hippie, quando prevalecia aquela ideia de ter uma vida alternativa”, afirma Renato Agostini, biólogo e proprietário do Sítio Solstício. “Vim para cá em 1983, assim como muitas outras pessoas, pelo fato de Teresópolis ser próxima ao Rio de Janeiro e pela fertilidade da terra, que é muito boa.”

Nesse movimento de neorruralismo, em que se troca a vida na cidade pela do campo, uma das formas de subsistência passou a ser a agricultura. “Com isso, acabou formando-se um polo de produtores”, diz Renato. “Porém, com o surgimento de adubo químico e veneno, e até por uma questão de produtividade e demanda de mercado, muitos acabaram mudando para a produção convencional. Afinal, o canal de venda do orgânico ainda é muito restrito”, diz Renato.

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A importância da certificação

Para oferecer ainda mais legitimidade e visibilidade aos orgânicos da região, no ano de 1985, em Nova Friburgo, surgiu a Associação de Agricultores Biológicos do Estado do Rio de janeiro (Abio), sendo até hoje uma das certificadoras pioneiras no país.

“No começo, a certificação acontecia por meio de auditoria”, afirma Renato. Hoje, está em vigor o Sistema Participativo de Garantia (SPG), em que todas as partes da rede de produção orgânica são responsáveis pela avaliação, de acordo com as normas do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) como Organismo Participativo de Avaliação da Conformidade Orgânica (Opac), uma política pública fundamental para esses pequenos agricultores.

O caminho do orgânico

Nos mais de 30 anos de propriedade, Renato Agostini conta que chegou a produzir tudo o que podia, a fim de garantir a autossuficiência. “Tínhamos criação de animais e produzíamos geleias, pães, manteiga, mel, bem como ovos, leite. Mas quando meus filhos começaram a nascer e o dinheiro apertar, foi preciso me especializar e realmente atingir o mercado.”

A alternativa foi apostar nas hortaliças, comercializando-as em uma pequena feirinha na capital. “Depois, conseguimos entrar em mercados, como o Pão de Açúcar”, afirma. A consolidação da marca, por sua vez, chegou junto à produção de brotos. “É um cultivo indoor, fechado, e muito rápido. Temos um excelente retorno.”

Atualmente, Renato, assim como muitos outros produtores orgânicos da cidade, comercializa seus insumos em alguns mercados e restaurantes de Teresópolis e da cidade do Rio de Janeiro, além de cestas em domicílio. “Tenho parceria com o pessoal do Clube Orgânico, que faz toda a parte de marketing, recebimento, venda e distribuição”, diz. “Com isso, tive de abrir muito o leque, por causa da variedade que precisa entrar nessas cestas. Mas, agora, minha ideia é reduzir, focar mais no que o sítio realmente tem aptidão. Estou em uma época de reengenharia, o que para mim é muito legal.”

Segundo ele, a agricultura orgânica requer muito mais mão de obra, já que não utiliza qualquer tipo de herbicida. “Nosso foco é a terra. Temos de fortalecer o solo para que a planta cresça saudável e resistente ao ataque de insetos. E isso aumenta o trabalho.” O manejo artesanal também é prejudicado quando há grande diversidade de ingredientes a ser cultivada, uma vez que é preciso cuidado em dobro. “Não seria possível trabalhar uma boa produtividade para dar conta do volume de venda, além de que se perde muita coisa nesse caminho, encarecendo a compra de insumos e a própria mão de obra fica mais difícil.”

No entanto, Renato afirma que vê o mercado de orgânicos finalmente se estruturando. “Só agora as pessoas estão começando a conhecer e a fazer questão de se alimentar melhor. Procuram saber de onde vem o alimento e exatamente o que estão colocando na mesa, sem aquela porção de componentes que ninguém conhece. A consciência aumenta a demanda e, consequentemente, a produção, o que faz o preço cair. O caminho é esse.”

Em equilíbrio

“Minha vida é basicamente isso”, diz Roberto Selig, referindo-se à sua propriedade, o Sítio do Bicho Solto. Formado em agronomia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Beto, como é conhecido, chegou a Teresópolis em 1982. “Sou neorrural puro. Minha família não tinha terra nenhuma. Naquela época, aqui era um lugar muito interessante, com moinhos de pedra e criação caseira de animais. Isso atraiu a mim e a minha mulher, pois procurávamos uma forma de mergulhar em outra cultura.”

Quando chegou ao sítio, uma propriedade de cerca de 30 hectares, Beto começou a fazer agricultura convencional. “Isso até 1986, porque a força motriz de eu ter saído do Rio de Janeiro era a questão ambiental. Essa sempre foi minha razão de ser”, afirma. No entanto, Beto conta que, com o aumento do cinturão verde, o cultivo tradicional – aquele em que não há restrições quanto ao uso de agrotóxicos – tomou conta de seu entorno. “Certo dia, fui fazer uma palestra sobre água e, para exemplificar, tirei uma foto do meu vizinho colocando herbicida na beira do curso d’água que abastece a população de Teresópolis.”

Os desafios da produção orgânica

Segundo ele, a agricultura orgânica representa um traço pouco significativo em comparação ao número total de produção rural do município. “Você pode considerar perto de zero”, diz. “A Associação Agroecológica de Teresópolis tem cerca de 50 unidades de produção. Pequenas, muito pequenas. Estamos falando de um universo com 3.500 propriedades rurais. Mas isso em número de estabelecimentos. Se contarmos em volume de produção, não chega a 0,5%. São poucos os produtores, e com baixa produção.”

Por esse e outros motivos, a realidade econômica do orgânico ainda é bastante delicada, um dilema que Beto vive diariamente. “Estou sempre na corda-bamba entre o meio ambiente e a economia. São coisas antagônicas, no meu ponto de vista. Quando você tenta acelerar o processo de produção, automaticamente aumenta o impacto ambiental, a não ser em situações muito adaptadas”, afirma.

A exemplo disso, o produtor cita as sementes industriais, que resultam em insumos de altíssima qualidade, aumentando o volume e a rentabilidade. “Mas, para o orgânico, é preciso entender que essas sementes passaram por todo um processo que você condena, de desvalorização do alimento.”

Quando questionado sobre a agricultura convencional, Beto não deixa de ressaltar que ela também enfrenta muitas adversidades. “Eles trabalham com equipamento pesado, com sagacidade e autoexploração. Mas valorizo o gosto do acordar, do dormir, do convívio. É isso o que me dá satisfação, me realiza. E me esforço para conciliar e viabilizar as coisas por aqui. Encontrar o equilíbrio é o empenho da minha vida.”

Nova geração

Diferentemente de Renato e Roberto, José Francisco de Siqueira Queiróz viveu sua infância em meio à fazenda da família, a Vista Alegre. Mas as surpresas do destino levaram-no a se formar engenheiro, enfrentando a rotina pesada que a profissão exige. “Eu já morava longe da família, vivenciando situações de trabalho que muitas vezes não tinham nada a ver com meus ideais”, diz Zé. “Estava para completar 30 anos e surgiu uma oportunidade de ir para Moçambique. Comecei a repensar várias coisas e percebi que, se eu fosse, deixaria de lado todo o legado de minha família.”

Com o sonho de empreender e ser produtor de café, então,  Zé tomou o desafio de assumir parte da fazenda que estava abandonada. Mais tarde, com os amigos de infância – os irmãos Diogo e Leonardo Pimenta Caiano –, montou uma sociedade. “Somos três jovens que saíram do meio urbano, com formação e empregos estabelecidos, para buscar algo completamente diferente do que estávamos acostumados”, diz. “Viramos até piada. Diziam que três meninos caindo de cabeça no mercado de agricultura orgânica jamais funcionaria.”

Porém, entre erros e acertos, Zé conta que foram crescendo aos poucos. “Tomamos vários tombos até nos estabilizarmos e entendermos o mercado. Mas investimos muito na fazenda, bem como pensamos em crescer de outras formas.” Recentemente, ele se juntou a mais dois produtores para o fabrico de ovos caipiras orgânicos. Há ainda planos de inaugurar uma fábrica de ração, já que o custo desse insumo representa 70% do investimento na criação de animais.

No entanto, a expansão e a ocupação de todas as áreas da fazenda, garante Zé, será totalmente responsável. “Todos os anos planto café, é o meu projeto a longo prazo”, afirma. “Mas, em breve, quero começar a secar os grãos. A colheita será manual, ou seja feita com mulas, sem emissão de carbono. Tudo bem alternativo.”

Aquilo que hoje é produzido, como por exemplo frutas, hortaliças, ovos e mix de temperos, a Fazenda Vista Alegre distribui em feiras, cestas, mercados e restaurantes. Além disso, antes mesmo de começarem a plantar os insumos, Zé e seus sócios foram até a capital carioca conhecer chefs e casas consagradas para entender a demanda do mercado. Mas, como conta o agricultor, foi preciso amadurecer para trabalhar com restaurantes, tendo capacidade de atendimento, além de qualidade de insumos e estrutura de empresa. “O legal é que os restaurantes também buscam um produtor ponta-firme, que atenderá sempre, com bons produtos e preço justo”, diz.

No campo, a alta demanda também trouxe nova dinâmica no dia a dia de trabalho. “A mão de obra para a agricultura orgânica é complicada. Por isso, acabamos optando pelos mais jovens, que têm ritmo e mais contato com o digital. Nós nos comunicamos por meio do WhatsApp, mandando os pedidos, tirando fotos e fazendo vídeos.”

Apesar das dificuldades de logística, venda e mão de obra, Zé afirma que, em relação às técnicas, não há segredo. “Trabalhar com orgânicos é seguir as estações do ano, usando apenas o que é bom para a planta. No fim, então, tudo é aprendizado.”

Associação Agroecológica de Teresópolis

A feira agroecológica de Teresópolis, que até hoje é procurada pelos consumidores da cidade, surgiu em 2005 por um movimento de produtores orgânicos e apicultores da região. Foi essa iniciativa, inclusive, que deu origem à Associação Agroecológica de Teresópolis (AAT), fundada dois anos depois. A entidade, portanto, tem como objetivo incentivar e promover a agroecologia, a economia solidária e o consumo consciente. Hoje, tem cerca de 50 associados e realiza três feiras orgânicas pela cidade. organicosparatodos.com.br

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Beatriz Albertoni

A paulistana divide-se entre duas paixões: jornalismo e gastronomia. Formada pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, a repórter está na redação de Prazeres da Mesa desde 2015. Adora conhecer histórias, viajar e apreciar um bom show de rock, além de nunca recusar bolo acompanhado de cafezinho.

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