O chocolate baiano se encontra com o mundo
Por Júlia Ferrari
Fotos divulgação
Cacau Cabruca do Sul da Bahia, nome comprido para algo que parece simples, mas não é. O sistema cabruca, recuperado há poucos anos no Brasil, em que a produção é desbastada a facão das árvores nascidas no meio da mata, foi o responsável pela ascensão do país no mercado chocolateiro. Até 2010 o cacau brasileiro era conhecido como “cacau fumaça” e concorria com a importação do fruto de outras regiões do mundo, considerado de “melhor qualidade”. O reconhecimento veio na edição daquele ano do Salão do Chocolate, em Paris, que premiou um produtor baiano como “Cocoa of Excellence América do Sul”, desbancando países tradicionais como o Peru, Colômbia e Venezuela. De lá pra cá, o sul da Bahia se consolidou no cultivo e na produção do cacau e hoje se destaca no mercado. O sistema cabruca traz equilíbrio ao ambiente, menor custo de produção e mais variabilidade genética, além disso, é hoje uma das 20 Fortalezas Slow Food, no Brasil.
Articulada nos últimos dois anos, a Fortaleza está centralizada no Assentamento Dois Riachões, em Ibirapitanga – a 380 quilômetros de Salvador. A comunidade, 100% agroecológica, foi a primeira área do estado da Bahia certificada pela Rede de Agroecologia Povos da Mata no modelo participativo e hoje conta com 40 famílias que vivem do plantio de cacau e hortaliças, da venda de produtos como o nibs ou das amêndoas para empresas como a AMMA Chocolates. Esse ano, a comunidade começou a fazer testes para produzir chocolate e iniciou uma capacitação de agricultores para realizar o trabalho, permitindo assim que eles possam participar de todas as etapas do processo – e não só da colheita do cacau, como acontece na maioria das grandes indústrias.
Era março quando apareceram as primeiras informações sobre a candidatura de delegados para a 12a edição do Terra Madre Salone del Gusto, que aconteceu em Turim, na Itália. O processo era simples: responder a um questionário que apresentasse suas motivações para ir ao evento e contar sobre sua relação com o movimento Slow Food. Do outro lado, no sul da Bahia, mais precisamente no Assentamento Dois Riachões, estava Luciano Ferreira, assentado de 35 anos, pai e produtor de cacau, membro da Fortaleza Slow Food do Cacau Cabruca do Sul da Bahia, que viu no encontro a oportunidade de levar seus produtos para Itália e de conhecer outras realidades dentro do Slow Food tanto em âmbito nacional, quanto internacional. Luciano foi selecionado entre os 18 delegados que representaram a Bahia no evento, graças a uma parceria do Slow Food Brasil com a Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional da Bahia, ligada à Secretaria de Desenvolvimento Rural.
O caminho até Turim foi pura apreensão, entre idas e vindas na Polícia Federal, no Exército e em tantos outros órgãos, o prazo para compra das passagens for perdido e a viagem foi colocada em risco. As noites mal dormidas só foram recuperadas com o passaporte, finalmente, emitido. A correria tinha valido a pena. Era hora de fazer as malas e colocar os produtos na bagagem.
Os cinco dias de evento foram atribulados para Luciano, que teve de dividir seu tempo entre as vendas no estande da Bahia, a participação em conferências e rodas de conversa e a descoberta de novos produtos, sabores e lugares. A união dos povos em um espaço, que valoriza cada cultura tradicional, chamou atenção do baiano.
“Umas das coisas que mais me marca aqui é ser um evento que reúne diversidade de culturas, línguas, saberes diferentes. Reúne o povo que pensa e busca a construção de um mundo mais justo”, disse. “É fantástico que não existe uma competição de povos, mas existe uma junção deles, ou seja o chocolate de um país não compete com o chocolate de outro país. Pelo contrário, ele se junta e cria, na diversidade, a possibilidade de comercialização justa com produtos de todo mundo.”
Nos momentos livres, o produtor passeou pelos pavilhões, provou diversos produtos e se encantou com as histórias que ouviu, a barreira da linguagem não é problema no Terra Madre, se fala a língua do alimento, de luta pelos mesmos ideais, assim as histórias conseguem ser transmitidas mesmo que o idioma não seja o mesmo.
Os olhos atentos do baiano passearam pela África e se emocionaram ao perceber que a cultura alimentar e os alimentos que estavam no estande da região são os mesmos da cultura brasileira. “Do ponto de vista histórico da escravidão, não foram só os escravos para o Brasil, mas também sua cultura e ela está extremamente presente na vida do povo brasileiro”, afirmou Luciano.
O passeio pelo Salone del Gusto permitiu uma viagem pela Itália, em que o produtor pôde experimentar ingredientes e preparos que não são comuns à sua realidade, como um embutido curado por oito anos que fez com que Luciano refletisse sobre as diferentes relações dos povos com o alimento. “É outra cultura alimentar.” Marcou também o cuidado com os produtos, rótulos e embalagens, a todo momento o baiano parou para tirar fotos daquilo que mais chamava sua atenção para levar ao assentamento as ideias de como trabalhar melhor a imagem do que é produzido ali.
Como produtor de cacau, ele não podia deixar de conhecer o produto de outros países e, em uma tarde livre circulou pelos estandes para ver o que tinha de chocolate e cacau pelo evento. Encontrou na Costa do Marfim um chocolate feito de maneira quase primitiva: uma pedra é aquecida em uma vela e usada para macerar a amêndoa, que é, então, seca e fermentada antes de passar pelo processo. Segundo Luciano, este é um processo rápido que resulta em um chocolate mais forte e rústico visto que os grãos da amêndoa são perceptíveis na boca. Para ele, lembrou a “cocada do cacau”.

Mais uma volta pelo pavilhão e surge o estande do Equador. Uma mesa cheia de chocolates em barra e amêndoas torradas chamava a atenção de quem passava. Ali estava Agustina, mulher sorridente que recebeu com carinho os olhares curiosos em torno de seu produto. O jeito tímido de Luciano encontrou receptividade na hora, e dali saíram bons minutos de conversa e inspiração que vão desembarcar na Bahia junto com o produtor. A similaridade da realidade que a produtora vive foi o elo entre os dois, no caso da equatoriana sua família possuía uma fazenda de criação de gado e, graças ao cacau, a jovem recuperou o solo infértil da propriedade e começou a vender sementes do fruto e outros produtos cultivados no local, a um preço irrisório. Algum tempo depois, percebeu que poderia agregar mais valor ao cacau se o transformasse em chocolate, criando assim a Mashpi.
A marca participou pela primeira vez do Terra Madre em 2014, ainda com um chocolate muito artesanal. No mesmo ano a propriedade ganhou prêmios ambientais e hoje conta com certificação orgânica pelo Estados Unidos e pela União Europeia e vende seus produtos na Alemanha. A produção se desenvolveu, Agustina começou a desenhar as próprias máquinas e agora compra matéria prima de outras fazendas para dar conta da produção. A conexão entre as histórias dos dois criou ali um momento caloroso de muita troca – as passagens contadas por Agustina fizeram os olhos de Luciano brilhar. “Muitos dos sonhos de nossa comunidade já são realidade na comunidade dela”, disse o produtor.
Os cinco dias intensos não foram só de mergulho internacional, as relações entre os delegados brasileiros se estreitaram e o evento foi o momento para muitos deles, finalmente, se conhecerem. Dali saíram novas ideias de parcerias, como a inserção do café da Chapada Diamantina na cesta básica do assentamento de Dois Riachões.
“Para mim é um experiência única, agradeço muito pela oportunidade de estar aqui, participando, interagindo e conhecendo experiências que parecem muito com a nossa do ponto de vista da organicidade da comunidade, dos desafios e dos enfrentamentos dessas comunidades, seja ela pela luta pela terra, para manter a biodiversidade, ou para mudar sua matriz de produção – da convencional para a agroecológica – os desafios dos ensinamentos da valorização da educação para que essa educação possa ser um vetor de fortalecimento dessas experiências.”
Luciano volta para casa com mais desafios, novas ideias e com a certeza de que a luta é feita em conjunto que, independentemente do continente ou da língua, a realidade agroecológica é a mesma para todos. O mundo está unido para mudar e isso só vai acontecer se todos trabalharem juntos. As conexões e descobertas do Terra Madre Salone del Gusto 2018 serão levadas a Dois Riachões, ao Equador, à Costa do Marfim, ao Japão e a inúmeros outros lugares e só assim caminharemos em direção a uma realidade boa, limpa e justa.